21 setembro 2013

A Garota da Capa Vermelha - Parte 2 - Capítulo 18

Ele seguia duas figuras. Figuras humanas. Vulneráveis.
— Claude — uma delas choramingou, mal capaz de pronunciar uma palavra.
Ridículo. Mais um gemido ridículo ecoa alto nos ouvidos de um predador. Isso, e as batidas do coração de uma garota.

***

Movimentando-se pelos destroços, com os olhos ardendo pela fumaça, Valerie se sentiu isolada, separada dos acontecimentos que ela acabara de testemunhar como se estivesse atrás de uma parede de vidro. Perguntou-se vagamente por que não estava entre os mortos. Por que ela não estava apavorada até os ossos como Roxanne, que tremia ao seu lado?
— Claude! — Roxanne chamou novamente, sua voz em pânico. — Cadê você?
Roxanne sabia que era melhor não confiar em sua mãe para se preocupar com Claude. Mas ela e Valerie não haviam encontrado seu irmão entre os aldeões encolhidos, que se apertavam como sardinhas na igreja. Viram seus pais e os perderam com a mesma rapidez enquanto seguiam seu caminho.
Até agora, não haviam encontrado Claude entre os mortos. Até agora.
Tampouco Valerie encontrara Peter. Ela queria chamar por ele também, mas Daggorhorn era uma cidade que se alimentava do escândalo. Assim, mesmo em meio à tragédia, ela guardou o segredo.
Havia outra coisa que a impedia de chamá-lo. Uma suspeita que começara a crescer dentro dela, com a qual até agora sua mente apenas havia flertado, recusando-se a abraçá-la. Tudo isso havia começado quando Peter chegara... Tinha que ser uma coincidência...
Ela sentiu um movimento por perto e olhou ao redor cuidadosamente, sem querer alarmar Roxanne. Mas mesmo isso foi o suficiente.
— O quê? Aconteceu alguma coisa?
— Não. Não é nada.
Colocou uma mão reconfortante no braço de sua amiga enquanto pensava em seu próximo passo.
— Por aqui — falou, guiando Roxanne para o Beco dos Tintureiros.

***

Quando o Lobo seguiu as figuras ao virar a esquina, o odor pungente de corante interferiu no cheiro de medo de uma das garotas. Mas e a outra garota?
Como é estranho perseguir alguém que não exala terror.

***

Valerie pensou em Lucie. Aquele era um lugar de que elas sempre gostaram, um estreito caminho mágico com um tapete de pétalas caídas ao redor das cubas de corante como flocos caídos de um céu crepuscular. Valerie crescera indo lá, sempre desesperada para enfiar os pés empoeirados dentro delas ou roçar as mãos ao longo da superfície da convidativa água azul adormecida. Ela havia feito isso uma vez, mas Lucie, a menina grande, a pegara em flagrante, puxando a palma da mão azulada para fora da cuba comprida e rasa. Para fazer as pazes, Lucie roubara um punhado de flores das torres de armazenamento e tecera-as com cuidado no cabelo de Valerie naquela noite.
Se ao menos as flores vivessem eternamente.
Se ao menos as irmãs também vivessem eternamente.
Algo assustou Roxanne, que soltou um grito, inclinando-se para frente. Valerie agarrou seu pulso, puxando-a para trás da borda de um tonel de tinta azul, brilhando como uma granada brilhante ao luar.
— Cuidado!
Um barulho ecoou atrás delas. Viraram-se; o coração de Valerie estava suspenso no peito, como no momento que antecede a queda livre.
O Lobo surgiu através da fumaça. Voraz, rosnando, mostrando seus dentes de adaga cobertos de sangue.
Valerie girou para trás, puxando Roxanne, congelada, junto com ela. As duas correram; os pés lançavam um jato de pétalas pelo caminho.
O beco chegou ao fim. Não havia saída. Valerie se maldisse por não ter pensado nisso. Havia apenas a parede das torres de armazenamento cheias de flores picadas para a tintura. Uma escada de estacas foi cravada na madeira. Valerie saltou, agarrando-se a uma delas e saltando para cima. Olhou para baixo: o Lobo não estava à vista. Talvez houvesse perdido o interesse.
Mas Roxanne estava paralisada. Valerie se abaixou.
— Segure a minha mão!
— Não consigo.
— Vamos!
Roxanne não se mexeu. Valerie soltou a estaca, aterrissou ao lado de Roxanne, pronta para sacudi-la de seu torpor – mas então o Lobo saltou diante de Valerie.
Era enorme, tão grande que estava em toda parte, mais alto que qualquer homem que já caminhara sobre a terra. Esse era o mal que havia cravado os dentes na carne de sua irmã. Valerie sentiu sua coragem se contrair em pânico.
Mas ela não conseguia desviar o olhar do ouro flamejante dos olhos do Lobo. O Lobo não piscou enquanto eles respiravam em uníssono.
O mundo silenciou. Então Valerie ouviu uma voz intrincada, uma mistura entremeada de sons tanto masculinos quanto femininos, humanos e animais. Um composto de cada voz que ela já conhecera, que vibrava profundamente dentro dela. A voz do Diabo.
— Você achou que conseguiria fugir de mim?
Valerie sentiu o céu girar e a terra ceder.
— O quê...? — ela respondeu. — Você fala?
— Tudo o que importa é que você me entende.
Valerie sentiu a doçura espessa das flores se misturando com o rosnado almiscarado do Lobo.
— Você sabe o meu nome — ela afirmou,
— O que você está fazendo? — perguntou Roxanne a Valerie, com a voz trêmula.
O Lobo virou-se para Roxanne, rosnando até as pernas dela cederem, e ela desabou em um monte silencioso no chão. O Lobo, desinteressado do destino de Roxanne, voltou seus olhos para Valerie. A voz do demônio surgiu novamente, preenchendo sua mente, seu corpo.
— Nós somos iguais, você e eu.
— Não — Valerie foi rápida, sua própria alma rejeitando a ideia. — Não. Você é um assassino. Um monstro. Eu não sou nem um pouco como você.
Ela estendeu as mãos para trás de si, tateando as cegas por algo para agarrar. Não encontrou nada.
— Você também matou. Eu conheço os seus segredos.
Valerie sentiu sua respiração fluir novamente pelo seu corpo, mesclando-se com a pulsação que martelava em seu peito. O que o Lobo disse aterrissou em um lugar mais profundo que a audição.
— Você é uma caçadora — o Lobo continuou, escarnecendo dela. — Posso sentir isso em você, mesmo agora.
Valerie não pôde deixar de imaginar o que o Lobo teria dito a Lucie. Seus pensamentos explodiram de uma só vez, paralisando-a.
O Lobo se aproximou. Valerie estudou aqueles grandiosos olhos amarelos.
— Que... olhos... grandes... você... tem... — ela disse, com a voz fraca.
— São para te ver melhor, minha querida.
Hipnotizada pela intensidade daquele olhar incrível, Valerie não conseguiu desviar o olhar do horror que aconteceu em seguida. A pele de cada lado do rosto do Lobo se separou e fendeu em um ímpio desabrochar para revelar... um segundo par de olhos. Um par de olhos mais impressionante que o primeiro. Sensível e inteligente. Onisciente. Humano.
Antes que Valerie pudesse reagir, o Lobo falou suavemente; sua cauda enorme espanava a poeira de um lado a outro.
— Eu vejo o que está no seu coração — seus lábios de carvão, molhados, refletiam roxos de tão negros, e os dentes escarpados eram espaçados em linhas irregulares; havia apenas escuridão no lugar onde alguns faltavam ou estavam desalinhados. — Você quer escapar de Daggorhorn. Você deseja a liberdade.
Por um momento, Valerie pensou como um lobo. Ela descobriu que conseguia. Sentiu como seria correr livre, cruzar uma floresta escura com o sangue desperto, espreitar durante a caça. Ter uma vida livre do medo, de laços ou compromissos. Fazer o que quisesse, descompromissada de um lugar fixo, livre para escapar de uma vida de inseto, em constante vaivém dentro do mesmo raio minúsculo. Ela sentiu a visão dessa nova vida se apoderando dela, cortando suas conexões com o presente.
— Não... — ela tentou dizer.
Mas o Lobo, com aqueles olhos, viu que havia tocado em algo, em uma verdade.
— Venha comigo — disse.
Valerie hesitou, e o Lobo preencheu o espaço do silêncio.
— Venha comigo — repetiu.
Eu já ouvi isso antes.
Em algum lugar à distância, houve gritos, o clamor dos soldados, dos soldados, o tilintar das armaduras. O barulho a ajudou a clarear a mente.
— O padre Solomon vai detê-lo — Valerie ouviu sua voz enquanto falava.
Como uma garotinha desamparada, sozinha, cobrindo o rosto à espera de alguém aparecer para melhorar as coisas.
O Lobo endireitou-se em toda a sua altura, estirando as espáduas para trás. Sua sombra caiu sobre os rostos das duas meninas.
— Padre Solomon não sabe com o que está lidando.
O Lobo adotou um novo tom.
— Venha comigo ou vou matar todos aqueles que você ama.
Valerie tremeu com o peso do que ele pedia que ela fizesse; como poderia escolher? As orelhas do Lobo se movimentaram para trás com impaciência.
— Começando por sua amiga aqui.
Ela deu uma investida na direção de Roxanne, estalando sua mandíbula colossal. De forma inacreditável, naquele exato momento duas figuras apareceram das sombras. O arqueiro mascarado já abria fogo sobre o Lobo precisamente quando ele e Solomon dobravam a esquina do beco.
— Eu voltarei por você — O Lobo se inclinou para Valerie. — Antes de a lua de sangue minguar.
Quando o Lobo se içou por sobre o muro, Solomon pegou a besta e disparou uma rajada de flechas; entretanto, o Lobo já havia desaparecido na noite.
Solomon escalou atrás dele, mas não conseguiu chegar até o topo do muro. Atirava e recarregava, atirava e recarregava, sem tirar os olhos do Lobo enquanto o animal desaparecia ao longe.
Tremendo com o esforço de controlar sua força e sua ira, Solomon pulou como um gato de volta ao chão. Valerie viu que seu rosto estava negro, vermelho e amarelo, como diferentes velas derretidas juntas. Ele estendeu a mão para sentir o corante nas cubas, trazendo uma concha para o rosto, sentindo o seu aroma. Deixou o liquido verter e sacudiu a água de suas mãos.
Solomon principiou a levar as meninas para a igreja, mas quando passaram pela praça, onde a fogueira fora reduzida a apenas brasa, ele foi interceptado por uma mulher em pânico.
— Deus nos salve!
— Deus salvara apenas aqueles que ganharam o seu amor pela fé e pela ação — respondeu, olhando além deles na direção em que o Lobo havia ido.
Ele fez Valerie se lembrar de uma vespa: um comandante de olhos rápidos, zumbindo com a vaidade ferida.
Ela se lembrou de Roxanne e olhou para ela. Ela chupava o polegar. Toda a cor havia deixado o seu rosto, fazendo suas sardas se destacarem como as manchas que pontilham um ovo de tordo.
O capitão falou em outro idioma com um sol no portal da igreja, mergulhando sua voz em tons mais graves. Parou para escoltá-las até o adro. A imagem subia o portal, de Cristo como um caçador enfiando um punha no peito de um lobo, deu calafrios em Valerie.
— Aqui vocês terão garantia de segurança — o capitão mudou de idioma, fluente de novo em inglês.
— Mas o meu irmão! Eu tenho de encontrá-lo — Roxanne protestou.
— Se ele está vivo, você o encontrará lá dentro.
— Espere! — ela gritou; mas ele já havia fechado o pesado portal de ferro atrás delas.
Valerie olhou para a amiga com pena. Ela também estava preocupada com o paradeiro de Peter.
— Tenho certeza de que ele está seguro, Roxanne. Ele sabe se defender.
Roxanne a encarou de volta como se ela fosse urna estranha.
— Você falou com o Lobo — sussurrou Roxanne em tom acusador, com a voz fina entrecortada pelo medo.
— Eu tinha de falar. Ele falou conosco — Valerie pensou que a amiga concordava com ela.
— Não — Roxanne corrigiu. — Ele rosnou para nós... — O medo nos olhos dela assumiu novas profundidades. — Você o ouviu falar com você?
Valerie então percebeu a magnitude do que havia acontecido. Roxanne não ouvira uma palavra. Só ela. Em uma cidade como esta, o risco de alguém saber que ela possuía essa capacidade era monumental. Olhou ao redor para ver se alguém estava ouvindo.
Ela pensou nos boatos que proliferariam se alguém soubesse. Então, lançou esses mesmos olhares e sussurros sobre si mesma. Por que o Lobo havia falado com ela? Por que Roxanne também não entendera? Valerie se sentiu claustrofóbica em sua própria pele.
— Eles me chamarão de bruxa. Não conte a ninguém — implorou, com a voz áspera.
Roxanne lançou-lhe um olhar. Ela parecia aceitar o medo de Valerie como um reconhecimento de seu próprio medo.
— Claro que não. É óbvio.
Valerie se sentiu grata por Roxanne não ser o tipo de garota que pensaria em perguntar o que o Lobo havia dito.
Deu uma olhada em sua amiga, que andava em direção ao portal da igreja com seu rosto pálido a olhar obstinadamente adiante. Ela se parecia exatamente como uma garota que havia sido perseguida por um lobisomem deveria parecer. Mais uma vez, Valerie se perguntou por que ela mesma não estava mais traumatizada. Tudo parecia tão... natural, como se essa fosse a ordem das coisas.
Ao olhar para Roxanne, Valerie viu uma gota de sangue cair, e depois outra.
Roxanne tocou o rosto e sentiu a umidade abaixo do nariz. Depois de toda a carnificina que havia visto, era apenas um simples sangramento no nariz.
Roxanne sacudiu a cabeça e entrou na igreja. Valerie observou a amiga; em seguida, ergueu o rosto para o céu. Urna revelação atingiu Valerie quando ficou sozinha olhando para a torre da igreja. Aquele segundo par de olhos, que o Lobo lhe revelara.
Eles eram familiares.

A Garota da Capa Vermelha - Parte 2 - Capítulo 17

Valerie esperou até que as vozes dos homens diminuíssem, enfraquecessem e desaparecessem totalmente. Só então se apoiou sobre os pés e saiu furtivamente pela porta lateral para voltar para a comemoração, contente por ir embora.
Não viu nenhum sinal de Peter. Uma fileira de pessoas era iluminada pelas chamas altas e rosadas que pulsavam no ritmo da música. Parecia que ninguém havia notado sua ausência – até mesmo Roxanne estava ocupada, assistindo admirada as pessoas que caminhavam sobre o fogo, girando, dando piruetas, andando sobre as palmas das mãos sobre as brasas e chutando os pés no ar. De repente, tudo ficou tão belo...
Carregada de ferocidade animal, Valerie sentiu que poderia fazer qualquer coisa. O dono da taberna andava com dificuldade, com um par de chifres de bode amarrado sob o queixo. Afastando o cabelo do rosto, ela rapidamente o prendeu em uma trança frouxa, as mãos trabalhando instintivamente. Em seguida, agarrou os chifres direto cabeça dele e prendeu-os na sua própria cabeça.
Taças de metal estavam espalhadas sobre os fardos de feno empilhados; a cerveja escoava lentamente atrás dos feixes bem embalados e gotejava no fundo. Ao ouvir risos acima dela, Valerie ergueu o olhar. Alguns homens sentados sobre uma árvore despejavam suas bebidas pelos espaços entre os galhos nas pessoas que passavam. Uma das vítimas pensou em mostrar sua irritação, mas em vez disso decidiu rir. Alguém se embrenhou pelos arbustos e uma alma corajosa foi atrás dele. Alguns camponeses bêbados golpeavam os galhos, e de vez em quando um desabava. As pessoas ouviam; no rumor da noite, contudo, sequer se preocupavam em olhar.
De repente, as brasas ardentes da fogueira representavam tudo pelo que Valerie passara: as perdas, os fracassos, os arrependimentos. A música martelava enquanto ela corria, passando por Roxanne e sobre as brasas vermelho no chão. Enquanto dançava sobre as brasas, Valerie não tinha peso – existia apenas como movimento. Essa sensação terminou assim que ela tomou consciência do que havia começado a fazer; fugiu do carvão no chão e olhou par trás para o lugar onde ela havia estado.
Roxanne, seguindo-a, lançou-se na sua direção, gargalhando. Logo depois estavam nos braços uma da outra, girando e girando. Valerie não conseguia ver nada; sua visão revolta do mundo era condensada em um borrão. O que estava lá não era real. O que havia sido real fora a sensação das mãos de Peter, o peso de seu corpo e o toque de sua respiração.
Mas uma coisa rompeu tudo. Uma dupla de garotas que havia se inspirado em segui-las sobre as brasas era uma massa vertiginosa de cor; seus corpos dançavam por elas, revelando algo no beco que cortou o efeito borrado e prendeu a atenção de Valerie.
— Onde você estava, afinal? — Roxanne perguntou, absorta, engolindo ar.
Um par de olhos.
Valerie parou, empurrando Roxanne.
— Que é isso? Você sabe que eu estava te procurando.
Elas não se falaram por um momento, permitindo que o mundo parasse de girar. Roxanne esperava ansiosa por uma resposta. Mas Valerie estava em outro lugar, bem longe no tempo.
Ela tinha sete anos; uma menininha na floresta negra, paralisada de horror, presa por um par de olhos selvagens.
Olhos que a viram.
Não um tipo comum de olhar, mas um olhar de forma que ninguém nunca vira antes. Olhava através dela. Reconhecia-a.
O Lobo.
Ela sempre soube que esse dia chegaria. Sabia enquanto andava pela mediocridade de sua vida cotidiana, porém nunca se permitira pensar nisso. Mas sabia. E aqui estava.
Primeiro veio um rosnado baixo, inaudível em meio ao tumulto da festividade. Mas foi como a d’água que dá início a um maremoto.
Com um rosnado e um salto de longo alcance, Lobo já havia passado por Valerie e estava no centro da praça. O oficial de justiça, exibindo-se na mesa de honra, olhou de soslaio para a monstruosa forma escura diante dele; seu rosto franzia em uma tentativa de entendimento. Sua mente inundada pelo álcool lutava para reconhecer. Havia visto uma forma como aquela ontem mesmo, na caverna, mas este não poderia ser um lobo; a besta que o havia transformado em herói era um mero cãozinho comparada com esta... coisa.
Mas os olhos – os olhos amarelos incandescentes... sua negritude gigantesca... seu pelo esculpido pelo músculos por baixo... Horrível.
O oficial de justiça se levantou cambaleando; a mão buscava a faca em seu cinto de modo desajeitado, sabendo que todos estavam vendo.
A grande sombra preta correu na direção dele, rápida como uma flecha, e em um instante passou por ele. Mas um instante foi suficiente. O oficial de justiça ficou imóvel enquanto uma linha escura se ampliava em sua garganta, e então caiu no chão. Em um momento ele estava sorrindo, exibindo-se em toda a sua glória; no seguinte, estava morto.
— Estamos sob ataque! — alguém pensou em gritar.
O pânico atravessou o vilarejo como uma tesoura cortando uma seda fina quando o Lobo passou pela praça. Correndo para fora do tablado, os aldeões desabaram dentro do poço. Garrafas foram atiradas, baldes de maçãs foram chutados e instrumentos foram abandonados e deixados balançando de lado com suas cordas ainda tremendo. Os homens não pararam para ajudar as mulheres que haviam caído na lama barrenta; logo, elas saíam de lá por conta própria, com as saias respingando presas nas mãos que estavam chocadas demais até mesmo para tremer.

***

Claude estava sozinho embaralhando suas cartas, ainda esperando que William lhe devolvesse o seu chapéu. Ao captar o terror, correu disparadamente em pânico, fazendo as cartas voarem de suas mãos. Elas caíram lentamente, como pétalas, brilhando no chão de terra, e ele caiu de quatro, lutando por seu tesouro espalhado. Tinha de se levantar, ele sabia, mas também tinha consciência de que, se deixasse para trás até mesmo uma única carta, tudo que desse errado nunca seria corrigido, e que o erro se alastraria como um fungo até tomar conta do mundo inteiro.
Enquanto se arrastava para alcançar A Torre por baixo de uma carroça, ele congelou. Do outro lado da carroça, um homem era arrastado; a cabeça e os braços batiam contra o chão aos trancos, como um saco de maçãs, enquanto o Lobo o arrastava pela neve. Assim que eles se foram, Claude pôde ver o que ocultavam: uma das costureiras da aldeia, que apenas dois meses atrás havia vencido o concurso de bordado com uma imagem de “O retorno do amante após caçada” que sua agulha ágil havia recriado em um lenço de bolso feminino. Agora, ela estava caída na terra forma lamentável; seu sangue vital jorrava quente, negro com ímpeto.
Percebeu ali, de quatro como um cachorro, que nunca poderia conter a escuridão que se alastrava; sua vida era infinitamente pequena e, não importava o que fizesse, o baralho brilhante das cartas da vida estaria sempre espalhado e enterrado na sujeira de um mundo de sofrimento. Claude se agachou; seu corpo foi sufocado por um soluço.

***

Valerie estava no meio da loucura, em uma além do medo.
Por que todo mundo está correndo? O que a vida já lhes deu? De qualquer modo, eles pertenciam ao Lobo. E agora ele voltou para recolher o que sempre foi seu. Mas então quatro aldeões passaram caminhando por ela escondidos em suas capas, estranhamente destemidos.
O motivo ficou claro quando tiraram seus disfarces e sacaram as armas – uma espada de prata que reluzia de modo perverso, um par de machados de batalha assassinos e chicotes tão pesados quanto cabos de aço. Eram os soldados do padre Solomon. Eles estavam simplesmente à espera nos bastidores para o verdadeiro espetáculo começar.
Um deles, o capitão, lançou-lhe um sorriso duro.
— Corra e se esconda, menina — sussurrou.
Eles entraram na carnificina. Dos outros cantos da praça, os outros homens do padre Solomon fecharam o cerco.
Valerie olhou ao redor, acompanhando a criatura.
O Lobo plantara as garras nas costas do açougueiro da aldeia, mas suas orelhas se ergueram com o som de um feroz grito de guerra e ele olhou ao redor. Um braço ainda se contorcia cerrado em suas mandíbulas enormes. Ele observou um par de machados de batalha descendo, cada qual girando em uma das mãos de um enorme viking. O Lobo pareceu paralisado pela tempestade de metal, mas quando os machados desceram para entregar a morte dupla, houve um borrão de movimento e rosnados, rápido demais para qualquer olho ver, e o impressionante grito e guerra transformou-se em um grito horrível. Os machados voaram pelo ar, um fendendo o solo nevado e o outro encontrando o rosto de um aldeão fugitivo desafortunado, fazendo seu sangue jorrar.
Com um grande salto, o Lobo estava imediatamente a vinte metros de distância, perseguindo outro homem de Solomon e deixando o viking caído sobre o corpo do açougueiro, com apenas um braço.
Flutuando no pesadelo, Valerie deu de cara com uma visão impossível: o escriba, diligentemente desenhando o caos, colocara-se perto o suficiente para ver os detalhes. Sua mão se movia rapidamente, os olhos mais ainda, vendo a fera em fragmentos: ancas, pelo, dentes, língua. Ele não olhava para o seu pergaminho. Gastou um segundo para observar Valerie, lançou-lhe um sorriso triste, sugerindo que o artista estava horrorizado com o que via, mas era impulsionado por alguma perversa necessidade humana para registrá-la.
Valerie o observou se aproximar do Lobo, perto o suficiente para ver a eletricidade arrepiar o pelo de suas costas e a baba escorrer de sua mandíbula. Sua pena riscava a página, a tinta marrom manchava a folha de papiro. Ele bateu a pena para soltar a tinta, e aquele pequeno movimento foi suficiente para atrair os olhos do Lobo para cima dele. Valerie finalmente cobriu a boca com horror, enquanto observava o escriba erguer a pena – fora em legítima defesa? Ou fora para dizer: “Olha, sou apenas um artista”?
Não importava. Foi o último gesto de sua vida.
Valerie foi até o seu corpo e recuperou seu último trabalho do chão de modo que não fosse apagado pelo sangue e imundície. Um imponente garanhão passou por ela, relinchando enquanto o vento açoitava a crina em seus olhos. Padre Solomon estava montado nele e gritava.
— Vão para a igreja — falou, acima do pânico. — O Lobo não pode pisar em solo sagrado!
Quando ele sacou a espada e passou sobre o corpo do oficial de justiça, Valerie sentiu que ele saboreava a vingança. Ele os alertara; eles optaram por não ouvir, e agora pagavam o preço. Valerie sabia que era bom estar certo, mesmo a respeito de coisas que você preferiria estar errado.
— Sua hora chegou, besta!
A armadura de prata brilhou a luz do fogo enquanto o caçador seguia na direção da batalha. Valerie se perguntou se a espada de Solomon se perderia no pelo emaranhado e espesso do lobo. Será que alguma arma era grande o suficiente para derrubar essa criatura?
A efígie altaneira do Lobo havia se tornado uma mancha laranja contra o céu.
Os homens de Solomon singraram na direção do Lobo, mantendo-se rentes ao chão. Nenhum medo ou raiva se estampava no rosto do animal. Pelo contrário; Valerie imaginou que era um olhar de ligeiro aborrecimento. Quase de diversão.
Um soldado aproximou-se do Lobo, balançando uma corrente com uma bola de espinhos em cada extremidade. A arma parecia violenta por sua simplicidade. E, com a mesma simplicidade, o Lobo a derrubou.
Em seguida, outro soldado moreno correu para frente com um sabre curvo, duro e belo em sua ira. Ele pareceu atordoado quando as garras do Lobo encontraram o seu alvo, e sua pele estalou ao ser perfurada, deixando escapar um longo jato de sangue da fenda entre seu peitoral superior e inferior.
Os soldados ainda atacavam, um após o outro, sem dar nenhuma trégua ao Lobo.
Finalmente, o capitão veio correndo e sacou o seu chicote como expressão de sua ferocidade. Seu corpo era firme e definido; ele se parecia mais com uma bela escultura que com uma pessoa. Empertigando-se para frente, seu irmão vinha com ele, alçando seu próprio chicote que estava enrolado bem apertado. Ele soltou-o em preparação.
Os dois homens rodearam o Lobo. Um terceiro soldado ficou atrás deles, respirando com dificuldade, com a lança em riste. Os dois homens se moviam como golfinhos, arqueando e sacudindo à medida que açoitavam as tiras. A maioria dos aldeões já ouvira naquele momento o alerta de Solomon e fugira para a igreja. Mas Valerie ficou observando, sentindo suas entranhas tão tesas quanto os chicotes de couro.
Eles achavam que o haviam pegado.
Mas, encurralado, o Lobo cravou suas pernas e começou a recuar, puxando os soldados por suas duas correias tensas.
Os homens enormes deslizaram adiante no chão, tentando manter o equilíbrio, com cuidado para não se inclinar muito para frente ou para trás.
Suas pernas tremiam enquanto lutavam com a besta. O peso deles combinado não era, para o Lobo, um grande fardo.
Então algo se rompeu. Alguma tensão inevitável foi liberada, e Valerie sentiu seu coração afundar como uma pedra quando o capitão foi arrastado para um lado através da neve marcada de sangue, e o Lobo atirou o irmão para o outro lado da praça, o seu corpo achatado brilhando pelo ar como uma estrela.
O irmão do capitão se esforçou para levantar, mas o Lobo puxou-o de volta para a terra.
Valerie olhou para o padre Solomon montado em seu cavalo forte e, em seu rosto, ela viu o que nunca teria imaginado.
Incerteza.
O homem que viera preparado para tudo havia sido pego de surpresa.  O soldado com a lança se virou e caminhou com passos largos até Solomon, que mantinha os olhos duros de águia na cena.
— É forte – mais forte que qualquer um que já enfrentamos antes!
— Tenham fé. Deus é mais forte — Solomon retrucou, olhando para a frente e estimulando a sua montaria com o punho da sua espada aninhado firmemente na sua mão.
Do outro lado da praça, o Lobo reagiu ao nome da divindade. Virou-se para enfrentar o padre Solomon, deixando escapar um rosnado baixo. Solomon encontrou o olhar do monstro. Estendeu a mão e, pegando o crucifixo pendurado por uma corrente no pescoço, beijou-o.
Valerie percebeu que tudo aquilo que o havia tomado – dúvida, medo – já o deixara, e o homem da certeza retornou com vingança.
— Deus é mais forte!
Com isso, agarrou as rédeas e fincou as esporas nos flancos de sua montaria. Enquanto o cavalo arremetia, Solomon ergueu sua espada – a espada da ira de Deus. Mas o Lobo manteve sua posição. Sem medo, desafiador.
Suas mandíbulas abriram, deixando sair um rosnado sobrenatural que sacudiu o chão onde Valerie estava. O cavalo de Solomon se assustou; empinou, cruzando as patas sobre as outras e tropeçando nas próprias pernas, fazendo seu cavaleiro voar para trás no ar. Ele aterrissou no chão, batendo entre os carvões em chamas da fogueira, lançando um gêiser de faíscas. Os cascos do cavalo tamborilaram no chão enquanto ele galopava para longe.
O grito de agonia e raiva de Solomon parecia divertir o Lobo. Valerie pôde sentir o prazer em cada ondulação de seus músculos quando ele arremeteu na direção das brasas para acabar com seu inimigo indefeso, lutando para sair do fogo e com a espada perdida, Solomon sabia que o seu fim havia chegado.
Zzzzzziiiissssss!
Sombras inclinadas se arremeteram pela praça de lugar nenhum.
Não, não era de lugar nenhum – o arqueiro mascarado sentado no parapeito da sacada da taberna manuseava uma besta de fogo que cuspia flechas prateadas repetidamente. Elas voavam na direção do Lobo, que soltou um grunhido de raiva e, com um salto poderoso, subia no telhado de uma cabana. O arqueiro lançou flecha após flecha na direção da sombra que pulava sobre os telhados.
Com um salto final, o animal desapareceu na noite.
Mas o espetáculo não havia acabado. Valerie observou uma figura emergir das brasas ardentes e da fumaça, removendo as cinzas quentes de seu rosto. Ele estava queimado, marcado para o resto vida. Mas, estimulado pela dor e pelo ódio, pela ira amarga e pela sede de vingança, padre Solomon se ergueu. Ressuscitado.

A Garota da Capa Vermelha - Parte 2 - Capítulo 16

O homem dentro da fantasia de lobo abalou os nervos já maltratados de Valerie. Ela quase esquecera que a “comemoração” do oficial de justiça ainda acontecia.
Vagando pela praça com os sentidos aguçados, sentiu olhos a observando. Atemorizada, olhou para a esquerda e viu que eles pertenciam a uma cabeça de javali transportada sobre uma travessa de estanho. Ele tinha uma maçã corada em sua boca e uvas no lugar dos olhos, o que lhe dava um olhar distante.
A efígie altaneira do Lobo havia sido construída a partir de uma pirâmide de raízes, galhos afiados e detritos. Ela queimava na outra extremidade da praça, vomitando fagulhas de sua boca enegrecida. A lua de sangue pendia madura no céu vazio.
Um palco fora montado a partir de algumas tábuas, sobre o qual o pastor de cabras e alguns lenhadores giravam a manivela de realejos e dedilhavam alaúdes. Simon, o alfaiate, tinha as mãos sobre uma gaita que chiava estridente e alto como um animal moribundo. Os músicos sopravam suas cornetas o mais forte que conseguiam, ficando sem fôlego e tragando mais ar antes de começarem novamente.
Apesar de toda a comida de aparência deliciosa, o cheiro de lixo podre e o suor dos homens ainda enchia a praça. Valerie sentiu o estômago revirar.
Procurou Solomon e os seus homens, mas não os viu. Havia notado o seu acampamento montado no celeiro expandido atrás do armazém e imaginou que eles deveriam estar enfurnados lá naquela hora, recusando-se a participar.
Todo mundo parecia estar comemorando o máximo possível para se convencer de que deviam mesmo estar celebrando. Eles dançavam, frenéticos e selvagens, para se esquecer de tudo durante o momento de agitação. Alguns homens, respeitáveis durante o dia, movimentavam-se de quatro com dificuldade, arruinando as calças na neve. Uma mulher tropeçou na lama diante de Valerie, mas antes que pudesse ajudá-la a se levantar, ela já havia sido puxada para uma dança. Homens de rostos afogueados balançavam suas esposas corpulentas, admirando suas curvas a distância de um braço, com as mãos unidas sobre a cabeça. Irmãs dançavam com seus irmãos mais novos, mas mantinham seu olhar fixo nos garotos do outro lado do tablado. As vozes ricocheteavam pela praça, fazendo parecer que havia mais centenas de pessoas por lá.
Cercada por todos que conhecia, Valerie se sentiu completamente sozinha.
Suzette manteve os olhos baixos e se misturou na multidão sem uma palavra. Valerie viu o oficial de justiça, com sua careca reluzente de suor, dominando a cena em uma mesa comprida montada diante da taberna. Ele acenou para ela se juntar a eles, mas ela o ignorou com puro desprezo. Foi difícil, no entanto, manter seu senso de indignação amargurada. Havia muitas pessoas tomadas pelo delírio da comemoração para jogar a culpa em uma pessoa em particular. Era cansativo manter-se de luto. Valerie desistiu.
Seu pai, já pendurado de forma descuidada em um galho, soprou rápido e forte um chifre de boi, sinalizando inutilmente o início do festival que as pessoas já iniciaram. A cometa soou longa e grave, como alguém assoando o nariz.
— Ei! Ei! Todo mundo!
Valerie e as pessoas próximas se viraram para a voz estridente. Marguerite havia virado um balde enferrujado de cabeça para baixo a fim de aumentar sua própria altura e gritava para atrair a atenção, erguendo os braços acima da cabeça:
— Silêncio, todos!
O pretenso pódio repousava sobre uma inclinação e começou a ceder para trás. Henry o segurou para estabilizar a garçonete antes que ela caísse.
Aqueles que se encontravam nas extremidades da mesa continuaram a conversar – porque não a ouviram ou porque não se preocupavam em ouvir. Marguerite ergueu uma caneca de estanho.
— Para o oficial de justiça! — então, ao notar que havia conseguido a atenção de todos, ela acrescentou: — Por, ahn, sua bravura, coragem e destemor!
Valerie perguntou-se se ela diria algo mais. Parecia que a própria Marguerite não tinha certeza do que diria em primeiro lugar.
— E por... ter matado aquele Lobo bem morto, deixado ele inerte como os pregos que o pequeno Henry faz tão bem.
Henry sorriu, tentando manter seu semblante polido.
— Embora ele não seja mais tão pequeno — Marguerite piscou para ele, balançando os quadris para dar ênfase.
Embora os dois estivessem mais que ruborizados, Claude e Roxanne, parados graciosamente juntos em um canto, não disseram nada. Aquela não era a primeira vez que sua mãe os envergonhava. Valerie lançou a Roxanne um olhar solidário.

***

Valerie ficou atrás na multidão. Sentimentos de dor e medo inundavam os aldeões e, misturados com a raiva, faziam com que eles se sentissem invencíveis e selvagens.
O cair da noite sempre os fazia se sentirem imunes à lei.
Um fabricante de velas, sentado na borda do poço, chutava a água com os pés, encharcando os músicos. O tocador de alaúde deu uma espiada no seu buraco de seu instrumento.
Prudence caminhou até Valerie com a barra da saia cinza presa nas mãos enquanto dançava.
— Estou tão feliz por você ter vindo! — gritou acima do barulho, deixando os cabelos castanhos balançarem de um lado para o outro.
Valerie esperava que isso significasse que estava perdoada por estar comprometida com Henry. Decidiu confidenciar sua preocupação com a amiga.
— Prudence, o Lobo não se foi, não é? — Valerie perguntou; a voz soava oca em seus ouvidos ao fazer a pergunta que queimava e morria na garganta de todos como um fogo de artifício já usado.
Prudence parou de dançar e soltou a saia.
— Por que você está dizendo isso? — ela fez uma careta. — Você ouviu o oficial de justiça.
— Mas o Padre Solomon...
— Os homens sabem o que estão fazendo. Agora, vem cá!
Valerie viu o cabelo vermelho de Claude destacando-se na turba rodopiante. Desejava que ele pudesse se divertir um pouco após os acontecimentos do dia anterior.
Vendo que Valerie o observava, tentou uma dança animada, chutando com as pernas em ângulos estranhos para fazê-la rir. Ela forçou um sorriso para ele. No entanto, sem perceber seu próprio tamanho, a dança o lançou contra um grupo de mulheres rabugentas, que tiveram de se afastar de seu caminho com relutância. Claude sorria alegremente para elas quando um adolescente, William, correu até ele e lhe apanhou o chapéu da cabeça.
— Quem tem medo do lobo mau? — William gritou em zombaria inocente.
— Pare! — Valerie gritou; mas o garoto já corria bem longe, na direção contrária.
Claude correu atrás dele, perseguindo-o em volta do poço; ele escorregou na lama ao tentar segui-lo. Roxanne, que nunca o perdia de vista por muito tempo, correu até ele, encolhendo delicadamente os ombros para Valerie enquanto consolava o irmão.
“Para quem todos fingiam?” Valerie se perguntou. Próximo à efígie do Lobo, uma dupla de idiotas atirava móveis quebrados na fogueira. A multidão gritou de alegria quando alguém levantou o sinal de lua cheia do altar do Lobo acima da cabeça e o atirou contra o fogo.
Ela viu que Henry Lazar vinha na sua direção pela borda da praça. Pensou no conforto que havia sentido com ele mais cedo e, estranhamente, não sentiu nenhuma vontade de evitá-lo.
— Henry — ela disse, sentindo o vínculo do luto.
— Isso tudo parece tão errado. Eles mal foram colocados em seus túmulos — Henry falou.
Inspecionando a multidão barulhenta, Valerie ficou horrorizada ao ver Rose rebolando para Peter, girando seus largos quadris de forma sedutora. Ele a mantinha perto de si, segurando-a contra o seu peito enquanto juntos balançavam os ombros harmonicamente.
— Não — respondeu Valerie de repente, discordando de Henry; a compaixão que sentia por ele inexplicavelmente atingia o seu limite. — Deixe que eles comemorem.
— Não parece ser a hora agora — ele balançou a cabeça.
De repente, ao sentir a profundidade da sua própria dor, ela quis magoá-lo.
— Você ouviu o oficial de justiça. O Lobo está morto. Vamos todos retomar nossas vidas.
Naquele exato momento, ela se odiou. Ele havia manifestado exatamente o que ela sentia, e ela o atacara por isso. Valerie não se sentia em seu juízo perfeito. Virou-se para pedir desculpas, mas ele já havia desaparecido.
William passou correndo, usando o chapéu de Claude. Valerie viu que Claude hesitava mais uma vez ao redor da praça, ainda envergonhado e sem saber o que fazer. Havia sido uma noite difícil para ele. Ela foi até ele.
— William é um idiota. Vamos conseguir o seu chapéu de volta.
Esforçando-se para não parecer infantil, não conseguiu deixar de gaguejar:
— Foi m-minha irmã que fez.
Valerie deu um tapinha em seu braço e tentou localizar William por toda parte – menos por onde Peter estava. Ela dirigiu os olhos para o fogo. Quanto mais alta a música, mais alto as chamas se erguiam no céu noturno. Em seguida, Valerie viu que seu pai havia escorregado na lama e não conseguia se levantar. Uma menina pulou por cima dele, e as fitas de suas botas esfolaram rudemente seu rosto.
— Desculpe, Claude.
Quando ela se aproximou, viu que um homem com uma fantasia esfarrapada de lobo estava sobre Cesaire batendo nele com sua cauda achatada e soprando em seu, rosto.
— Eu vou soprar e soprar e...
— Deixe-o em paz! — Valerie gritou.
Visto que ele nada fez, Valerie correu, pegou um feixe de lenha e golpeou-o ferozmente. Algumas mulheres calaram seus insultos e recuaram impressionadas.
— Eu disse saia! — gritou muito alto, sobrepondo a música.
O homem saiu em disparada de volta para a multidão barulhenta.
— Você arrebentou os meus tímpanos! — Cesaire riu do chão, com o rosto recostado na lama e aparentemente sem saber o que havia acontecido.
Ele claramente encarara a noite como uma ocasião para beber o que pudesse tanto quanto pudesse até ficar embriagado demais para colocar as mãos em qualquer outra coisa.
— Eu estou falando sério!
Normalmente, Valerie aturava sua farra. Mas hoje não conseguia fazê-lo. Com toda a atenção dirigida para a sua família, queria deixá-lo seguro em casa. Naquele momento, Valerie sentiu mais que nunca a perda de Lucie; ela teria ajudado a cuidar de seu pai.
Valerie viu, envergonhada, que ele estava deitado na poça de seu próprio vômito.
— Papai...
— Já vou indo, já estou me levantando.
Ele conseguiu se sentar, mas não pôde ir além disso.
— Acho que lasquei um pedaço de dente — Cesaire observou de seu assento, esfregando o rosto.
Valerie ajudou-o a se erguer sobre os pés instáveis. Ele estava bêbado e tentava com esforço. Ela segurou suas mãos enquanto ele oscilava para trás e para frente, tentando equilibrar o seu peso.
— As coisas que parecem tão fáceis de dia...
Valerie o deixou se apoiar nela enquanto o arrastava para longe da multidão e o guiava na direção de casa. Ele olhou para a camisa, para o vômito.
— É só limpar isso e estarei pronto para ver o rei — ele murmurou, tentando bater de leve na camisa.
Passaram por um grupo de adolescentes.
— A mulher barbada desmaiou? — um adolescente gritou com a voz alegre.
— Donzela em apuros! — cantou outra.
Valerie contraiu os dentes. Ela sentiu o peso de seu pai como uma pedra em volta do pescoço.
— Não ligue para eles, Valerie — Cesaire murmurou.
Enquanto ele oscilava ao lado dela, Valerie se sentiu constrangida por sentir vergonha dele. Sabia que ele tinha consciência disso e que isso o magoava.
— Você é minha boa menina — ele revelou, com os olhos marejados, frágil em seu estado de embriaguez.
Ele se virou, e desta vez conseguiu encontrar cabeça de Valerie. Ela sabia que ele precisava ficar longe da confusão infernal do festival, uma celebração que ocorria apesar da morte de sua filha.
Ele olhou em volta, se perguntando onde estava casa, encontrando-a. Livrou-se dela.
— Volte lá e se divirta — ordenou.
Era toda a sabedoria paterna que ele conseguiu reunir. E sem nada mais além de um olhar na direção dela, seguiu adiante aos tropeços, como se talvez tivesse de descansar na frente da casa antes de tentar subir a escada.

***

Tomando o caminho de volta para a praça, Valerie viu duas menininhas de braços dados, cautelosas para não se perderem uma da outra no meio da multidão. Pensou em um festival em que sua família havia ido quando ela e Lucie eram pequenas, rodopiando nos braços de seu pai e em, mais tarde, sua mãe se agachando para dar pedacinhos de carne do tamanho exato em suas bocas, como se elas fossem bebês de passarinho.
— Eu gostaria de conseguir me sentir tão livre quanto Rose — Prudence veio dançando até ela, gritando acima da música, mantendo a postura perfeita mesmo enquanto dançava.
Já sabendo ao que ela se referia, Valerie se virou apreensiva para ver Peter e Rose. Ela estava perto dele e envolvia o seu pescoço com as mãos. Ele ergueu as mãos em seu rosto e enfiou a mão no cabelo escuro, semelhante ao seu – o que, de algum modo, era mais íntimo, uma traição mais profunda, do que seja lá o que seus corpos estivessem fazendo.
A banda tocava, gritando e zombando de vez em quando do par, o que era apenas combustível para Rose rebolar ainda mais. Peter mantinha a cabeça baixa. Ela sentia que Rose estava a punindo por Henry – por algo que sequer havia tido escolha. Valerie desejou que os dois morressem. Não conseguia decidir qual deles odiava mais, Peter ou Rose. Sua visão se turvou enquanto os observava.
— Você está bem? — Prudence perguntou, com a mão nas costas de Valerie.
— Estou.
— Eu me pergunto se não deveríamos impedi-la. Ela está arruinando o que resta de sua reputação ao dançar com ele — Prudence empurrou uma mecha de cabelo castanho para trás da orelha.
Valerie percebeu que a fogueira aumentara. As chamas subiam alto e projetavam sombras alongadas que dançavam pelo chão.
— Não! — ela respondeu, com tristeza. — Deixe que ela faça o que quer.
Então, um vidraceiro passou bebendo cerveja, quase irreconhecível sob o monte de folhas coladas em seu rosto. Tentou dar tapinhas nela com o braço livre, mas não conseguiu.
Valerie pegou o copo do homem e, inclinando-se para trás, deixou o líquido ardente encontrar a ponta da sua língua como uma onda. Deixou todo o conteúdo queimar o fundo de sua garganta. Erguendo os olhos, Valerie sentiu que nadava pelo ar. Agarrou Prudence e a puxou para uma dança selvagem; as duas garotas eram iluminadas pelas chamas, em êxtase.
Elas se inclinaram para frente, mantendo as suas pernas afastadas. De frente uma para a outra, mergulharam por baixo, deixando seus longos cabelos girarem e torno delas quando voltaram para cima. Dois passos para a frente, um passo para trás. Então, três passos adiante de modo que elas ficaram olhos nos olhos, peito a peito Sem nunca ter dado muita atenção ao seu corpo, Valerie era mais livre que Prudence e as outras meninas, e se sacudia como se estivesse possuída por um espírito poderoso.
Valerie e Prudence não pensaram sobre o lado para o qual deveriam girar, ou sobre o lado que a outra giraria. Elas apenas agiam, e funcionava. Com os membros soltos, giravam em círculos arrebatadores, levantavam as saias, e suas mãos flutuavam ao encontro, olharam uma para a outra, e seus olhos brilhavam com segredos. Valerie sentiu-se empolgada com a comunhão que ela e sua amiga compartilhavam.
Enquanto isso, Peter pairava sobre Rose, seu corpo repousando no dela; enquanto ela balançava sua saia, mostrava suas pernas. Embora Valerie e Peter estivessem dançando de forma diferente e seus corpos se movimentassem de maneira diversa, ambos executavam a mesma dança. Era uma dança de ciúmes antiga como a raça humana.
Capturando olhares que passavam em meio aos corpos em movimento de um casal que dançava entre eles, Valerie notou que Peter a olhava, embora ambos fingissem que não. A energia fluía entre eles, carregada pelas linhas de visão que asseguravam que nunca se encontrasse.
Bam!
Sem Valerie perceber, Henry veio cambaleando em direção a ela com a cerveja derramando para fora da sua caneca – obviamente a mais recente de uma longa sequência de bebidas. Peter movimentou-se de forma protetora para bloquear a passagem de Henry.
Ela sentiu um pouco de satisfação por Peter estar tão ligado nela quanto ela esteve nele.
Tentando muito entender o sentido das coisas através de sua falta de clareza decorrente da embriaguez, Henry finalmente percebeu que havia sido Peter. Ele se virou, respirando pesado e avançando direto para o seu rival, empurrando para fora do caminho um trio de bêbados mascarados de porcos.
Ao ver o olhar selvagem nos olhos de Henry enquanto ele arremetia, Rose afastou-se para o lado para se agarrar a Prudence. Henry empurrou Peter forte o suficiente para que ele cambaleasse para trás.
— Calma, amigo — Peter falou, recuperando o equilíbrio e entendendo rapidamente a condição em que Henry estava.
— Amigo? Você nos deixou nas cavernas — os músculos de Henry se enrijeceram.
— Parece que alguém não consegue lidar com bebida — Peter observou, porém não prosseguiu, sentindo que Valerie poderia estar pensando em seu pai.
— E agora — Henry continuou no seu próprio rumo, aproximando-se para encontrá-lo, com o cheiro álcool no hálito — meu pai também está morto.
Valerie aproximou-se de Henry.
— Por favor, não faça isso — disse ela, interferindo — Não vale a pena.
Henry a empurrou, sem perceber a própria força, o que a derrubou. Peter agarrou o braço de Henry e o torceu. Excedendo-se, Henry recuou o punho e acertou um soco no olho de Peter. A multidão riu ao ver Peter estatelar com força no chão.
Henry subiu em cima dele, segurou-o pelo colarinho e forçou Peter a encará-lo como ele nunca havia feito. Olhou nos olhos do homem que queria culpar pela morte de seus pais; isso era um refúgio do terrível pensamento de que tudo poderia estar perdido por um simples capricho do destino.
— Você é imundo — ele cuspiu.
Isso realmente fez os aldeões rirem. Mas Peter não riu. Ele puxou uma faca da bota e saltou, empurrando-a maldosamente na direção do rosto de Henry.
— Tire suas mãos de mim ou eu vou cortá-las.
A fica tremeu diante de Henry; a centímetros de seu rosto, Peter parecia ser capaz de cortá-las de qualquer maneira.
Henry, pronto para enfrentá-lo, não parecia ter medo.
— Peter, por favor... — Valerie disse suavemente.
Henry estava em busca de uma briga de moleques, mas Peter, ela sabia, queria sangue.
A voz de Valerie travou quando tomou consciência da beleza feroz daquilo, de ser tão amada. Ela vibrou de culpa e orgulho, da ideia de seu próprio poder, da ideia de que era amada tão impetuosamente.
Ao ouvir sua voz, Peter se afastou lentamente, mas parou para apontar a faca para Henry mais uma vez.
— Você vai se arrepender por isso.
Então ele desapareceu da praça.
Henry emudeceu quando Valerie olhou para ele com decepção, por um momento, antes de se virar e correr atrás de Peter.

***

Ela o seguiu até o abrigo escuro de um beco. O espaço fechado amortecia o barulho do festival a um murmúrio. Peter esperava recostado numa parede, com o peito arfante e os olhos selvagens e perigosos.
— Me deixe em paz!
Mas ela se sentia muito poderosa para isso. Não faria o que mandavam.
— Você está sangrando — estendeu a mão para tocar carinhosamente o seu olho.
— E daí? — ele respondeu, empurrando a mão dela com aspereza. — Meu Deus, Valerie. Qual é sua? O que eu tenho que fazer para você parar?
Valerie não aceitaria um não como resposta por que sabia como um sim seria maravilhoso. Embora anteriormente Valerie tivesse prometido negar seus sentimentos por ele, não podia negar que o que sentia agora era tão real. Tomou consciência da bebida correndo dentro dela, carregando-a em sua maré.
— Peter — ela começou. Ele olhou para ela, e ela pôde ver a dor em seus olhos — eu te amo — disse de própria vontade.
Com Peter, ela estava despida; ele conseguia tirar tudo dela. Ele não sabia o que dizer. Seus olhos cintilavam, brilhantes e ardentes. Apenas a deixou vê-los por um instante antes de se afastar. Ele soltou um suspiro entrecortado.
— O que você estava fazendo com a Rose, afinal? — ela perguntou, exigindo demais dele.
Peter ficou sombrio novamente. Virou as costas para ela, deu um passo adiante para dentro do beco e disse com voz mortificada:
— Eu não tenho que gostar dela para conseguir o que quero.
— Não acredito em você — Valerie respondeu, alcançando o rosto dele de novo. Peter afastou-se dela. — Você está mentindo.
Valerie queria tanto tocá-lo, sentir a batida do seu coração, saber que estava lá, que este era o seu Peter. Antes que pudesse desistir, ela colocou rapidamente o braço ao redor dele por trás e colocou a mão em seu peito. Então disse:
— Seu coração bate tão rápido... Eu sei que você sente da mesma maneira.
Virando-se, ele segurou o bracelete que Henry havia lhe dado. Ela não o deixou pegá-lo.
— Valerie, você sabe que eu não posso te dar algo assim. Não posso agora e nunca poderei.
— Você acha que eu me preocupo com dinheiro?
— Valerie — ele disse, dando-lhe outra chance para voltar atrás — eu sou a pessoa errada para você.
— E daí?
Ele finalmente se virou para encará-la, sem ousar acreditar; de repente, ela se viu beijando-o rapidamente nos lábios macios e grossos. Ele hesitou, lutando contra a sua promessa para a mãe dela, mas quando Valerie colocou seus braços frios ao redor dele, com seus dedos se enroscando nos cabelos dele, não conseguiu reagir. Permaneceu trêmulo, como uma árvore sendo derrubada em seu ponto de ruptura. Aquele beijo era o último golpe, o impacto final, e finalmente ele cedeu, derrotado.
Seus dedos, ásperos pelo trabalho, acariciaram o rosto dela enquanto eles respiravam juntos.
— Eu estive faminto por você por tanto tempo.
Ele cheirou os seus longos cabelos de seda de milho, penteando-os com os dedos.
Porém, logo em seguida Valerie sentiu aquele mesmo olhar que observara no festival: os olhos de uva, o peso de estar sendo observada. Ela ouviu algo se movimentar na boca do beco. Desta vez, não era a cabeça de um javali.
— Peter, você ouviu isso?
Ele nem se incomodou em responder. Movimentou suas mãos quentes para erguê-la, levá-la para o celeiro próximo, subir as escadas e depois pressioná-la contra a aspereza da parede, e Valerie se esqueceu de tudo...
— Melhor assim? — ele conseguiu dizer.
Valerie não conseguia responder. Ela sentia centímetro do corpo dele pressionando o dela enquanto ele passava levemente as mãos por sua cintura. Suas mãos procuravam os laços do corpete. Encontrando-os, ele os puxou até se soltarem.
O rosto de Peter não era liso, e suas mãos não eram macias.
— Peter...
Sua mão perambulava, e então descansou no alto da coxa dele. Ela estava lá e ele estava lá, seu corpo pressionava o dela com força. Queria carimbar o seu corpo no dele para sempre, para sentir a impressão. As roupas dele, as dela, tudo o que estava entre eles de repente pareceu insuportável; ela ansiava por tocá-lo, realmente tocá-lo com suas mãos e seu ser e tudo o mais.
Peter a fez deitar no forro de palha do sótão do celeiro. Valerie olhou para o interior alto e sombrio do domo. Era vertiginoso como estar dentro das câmaras painéis de um caleidoscópio de carvalho.
A respiração dele era irregular e desigual contra o pescoço dela. O calor reverberava pelo corpo dela como uma inundação solta. Valerie teve de se lembrar de respirar.
Ele abriu a blusa dela, que havia se soltado de dentro da saia. Dedos ásperos atravessaram sua pele quando as mãos dele abriram caminho para dentro. Era demais, percebeu. Suspirou, pensando que tinha de escapar daquilo, despreparada para a intensidade do desejo dele, quando um barulho soou lá embaixo.
Eles se separaram.
— Rápido! — Peter falou, levantando-a e conduzindo-a para trás de um pilar, de modo que somente ele era visível para o intruso.
— Peter! — alguém chamou.
Ele olhou para baixo: dois lenhadores carregavam um barril em um carrinho de mão.
— Peter, você pode ajudar aqui, por favor?
Peter lançou um olhar desesperado para Valerie. Logo ela fez um sinal, incentivando para que ele fosse. Peter se inclinou e fingiu soltar uma pedrinha da bota enquanto Valerie sussurrava:
— A única vida que eu quero é com você.
Puxou-o para si e deu-lhe beijos explosivos, ardentes, um após o outro. Peter cambaleou, tocou seu rosto quente e saiu.
Reclinada contra o pilar, Valerie ainda sentia a marca quente e persistente da pele dele contra a sua. Havia sido esmagador, e ainda assim ela queria manter o momento aprisionado para sempre.
Sentiu novamente a sensação de estar sendo vigiada. Instintivamente, olhou para cima. Um corvo de olhos redondos e brilhantes, empoleirado no topo da torre, baixou seu olhar negro curioso, desdobrou as asas e alçou voo.
De trás de seu pilar, Henry Lazar viu Valerie sentir sua presença e olhar para cima. A vergonha o inundou como se fosse um líquido. Seus sentimentos foram cortados, picotados como um pedaço de fita. Ao observar Peter e ela, ele tentara sair, mas não conseguiu desviar o olhar. Em vez disso, ficou congelado, horrorizado, paralisado pela intensidade da cena infeliz e bela.
Manteve-se parado mais um pouco, retesou seus músculos do queixo e se arrastou para longe.